... onde desempenhou determinadas funções, e sobretudo depois de o Presidente do Conselho, dr. Oliveira Salazar, não o ter nomeado para um alto cargo, julgo que o de governador-geral de Angola. O Delgado chateou-se e resolveu passar para a oposição ao regime. Mas é curioso que, alguns dias antes das eleições, no Batalhão onde eu estava, me dirigi aos soldados, explicando-lhes o momento que se vivia, começando por dizer-lhes que o general Delgado tinha umas certas ideias, o almirante Américo Tomás é que era uma pessoa da nossa inteira confiança, e os soldados disseram-me: Meu alferes, a gente não sabe nada disso, nós vamos para onde nos mandar.
(...)
B.O.S: Num curto espaço de tempo, entre 1959 e 1960, Delgado fugiu para o Brasil, Henrique Galvão evadiu-se, Cunhal fugiu de Peniche. Parece que de um momento para o outro todas as figuras da oposição são enviadas para o estrangeiro para lutar contra o regime. Quem lhes abriu as portas? Foi a PIDE?
O.C: Eu penso que sim. Eu ainda não estava na PIDE e, por isso, não sei com que intenção se terá permitido a saída ou a fuga para o estrangeiro das figuras mais marcantes da oposição, saídas que de facto ocorreram todas mais ou menos na mesma altura. Lembro-me de, alguns anos depois, ter conversado sobre isso com antigos colegas da PIDE, nomeadamente o director Cunha Passo, que me confirmaram essa tese. Foi tudo preparado. Repare que o Álvaro Cunhal era um homem que ia de Mercedes fazer os exames de Direito, o seu processo na PIDE desapareceu sem deixar rasto. E olhe que era um documento importante. Mostrava, entre outras coisas, que o Cunhal não foi sempre o bravo lutador antifascista que todos julgavam que era...
B.O.S: Mas o insucesso na recaptura de Cunhal ditou o afastamento do director-geral da PIDE, capitão Neves Graça, que segundo alguns mantinha uma ligação com o grupo de Botelho Moniz, e a sua substituição pelo coronel Homero de Matos.
O.C: Não é muito provável que o capitão Neves Graça estivesse ligado ao grupo de Botelho Moniz, mas também não é de todo impossível. E, se calhar, terá sido mesmo essa ligação que ditou o seu afastamento, mais do que o insucesso na recaptura de Cunhal.
B.O.S: O golpe de Botelho Moniz é uma intentona que recebe, desde o início, o apoio inequívoco da CIA e onde estão também o então tenente-coronel Costa Gomes e o próprio Marcello Caetano...
O.C: Apesar de na altura ainda não ter ingressado na PIDE, lembro-me muito bem do golpe abortado do Botelho Moniz e do Costa Gomes. Desconheço sinceramente até que ponto o Marcello Caetano terá estado ligado à tentativa de golpe, mas a verdade é que a tese do seu envolvimento faz todo o sentido.
B.O.S: E é curioso que no assalto liderado por Varela Gomes ao quartel de Beja, na passagem do ano de 1961 para 1962, o Costa Gomes volta a estar presente...
O.C: O Costa Gomes esteve em todas. É curioso que, nos anos 50, o Costa Gomes foi meu professor de Matemática no Colégio de São João de Brito. Olhe, não havia tipo mais religioso do que ele. Aliás, o São João de Brito era um colégio de Jesuítas. Depois, foi meu comandante-chefe em Angola, e posso garantir-lhe que nunca tivemos um comandante-chefe que nos desse mais apoio do que ele na guerra que fazíamos no Ultramar. Foi, sem dúvida, o homem que mais apoiou a PIDE/DGS em Angola.
B.O.S: Já estava na PIDE aquando da morte de Delgado?
O.C: Ingressei na PIDE alguns meses depois da morte de Humberto Delgado. E, como é de bom tom nestas coisas, nunca fiz muitas perguntas sobre o caso. De resto, como deve imaginar, independentemente de sermos todos colegas, numa polícia de informação ou de investigação há necessariamente certos limites. Foi já depois da PIDE ter sido extinta, quando estávamos todos na prisão, que conversei com vários colegas e amigos sobre o caso Delgado. Conheci bem o Casimiro Monteiro, o homem que parece que o matou. Conheci-o na Índia, no final dos anos 50. Trabalhava na polícia. E depois do 25 de Abril, voltei a encontrá-lo na África do Sul.
B.O.S: O Casimiro Monteiro teve vários problemas na Índia, foi demitido da polícia após processo disciplinar...
O.C: Parece que sim. Mas já depois da queda da Índia Portuguesa, ele esteve envolvido com a resistência portuguesa naquele território. Fez um trabalho excepcional. Era um homem destemido, especialista em descobrir e desmontar minas e armadilhas. Há quem diga, contudo, que era ele quem punha ou mandava pôr as minas e depois ia lá descobri-las. Estou a falar-lhe com toda a franqueza. Mas era um homem destemido. Em inúmeras operações militares em África, sabe que arma ele utilizava? Uma catana de samurai! Entrava nos acampamentos dos turras, aos berros, com aquele corpo enorme, e resolvia as coisas à catanada. A vida dele dava um romance! Combateu na guerra civil espanhola e esteve na Rússia durante a II Guerra Mundial.
B.O.S: A fazer o quê, a combater na Frente Leste?
O.C: Sim, sim. Em Estalinegrado. E o Spínola também lá esteve. Não sei se como combatente ou como mero observador, mas também lá esteve.
B.O.S: Mas não é estranho que um homem que foi demitido da polícia na Índia, após instauração de processo disciplinar, tenha ingressado na PIDE pouco tempo antes do caso Delgado e imediatamente incorporado na brigada ad hoc que matou o general?
O.C: É de facto muito estranho e não consigo encontrar explicação para isso.
B.O.S: Quem prepara a brigada ad hoc é o Pereira de Carvalho...
O.C: É efectivamente o Pereira de Carvalho, mas a brigada não podia ter sido constituída sem o consentimento do Barbieri Cardoso.
B.O.S: O Pereira de Carvalho tinha um poder enorme, dirigia a Secção Central que era uma polícia dentro da polícia...
O.C: Era, mas uma polícia dentro de outra polícia também está subordinada a um director. Repare: o major Silva Pais era aquele director decorativo, simpático, porque o homem forte era efectivamente o Barbieri Cardoso, que fez quase toda a carreira na PIDE. O major Silva Pais, por quem eu tenho muita admiraçãoo, sobretudo depois de ter assistido à forma digna como se comportou na prisão, era uma figura política da PIDE; o Barbieri Cardoso é que era realmente um homem de carreira nos serviços de informação, espionagem e contra-espionagem. Mas é evidente que se a operação carecia do consentimento do Barbieri Cardoso, já a constituição da equipa pode ter sido da inteira responsabilidade do Pereira de Carvalho.
B.O.S: Bacorejava-se que o Pereira de Carvalho era um homem da CIA...
O.C: É muito provável. Olhe, gostei muito de trabalhar com o Pereira de Carvalho. Era um homem desempoeirado e dinâmico. A verdade é que, de um momento para o outro, ele passou a habitar uma bela casa e a conduzir bons carros. Talvez fosse mesmo um homem da CIA. Se é verdade, tenho muita pena. Mas sobre o caso do Delgado, é tudo muito nebuloso. A quem interessava a morte do Delgado? Só interessava ao grupo de Argel.
B.O.S: Aliás, poucos meses após o incidente, Henrique Galvão escreveu vários artigos no jornal brasileiro "Estado de São Paulo", responsabilizando o grupo de Argel pela morte de Delgado, com a conivência do Partido Comunista. E a composição da brigada dá que pensar: organizada pelo Pereira de Carvalho, possivelmente um homem da CIA, e constituída pelo Casimiro Monteiro, recém-chegado à PIDE e imediatamente incorporado na mais importante operação do ano, o Rosa Casaco...
O.C: Conheço todos os que participaram nessa operação. De facto, o Casimiro Monteiro tinha ingressado recentemente na PIDE, mas olhe que, pensando bem, numa operação desta natureza talvez conviesse mesmo integrar um homem que não conhecesse nada do processo e que tivesse já alguma experiência em operações deste tipo. É que o Casimiro Monteiro era como um bulldog- dizia-se faz e ele fazia. Era um homem muito grande, muito largo, era uma besta de força. Tinha muita experiência militar. Quanto ao Agostinho Tienza, ele era apenas o condutor. O Ernesto Lopes Ramos, hoje licenciado em Direito e vivendo no Brasil, era um homem inteligentíssimo. O Rosa Casaco era um tipo essencialmente venal, um indivíduo que gostava muito de dinheiro. Vestia bem, era um bon vivant, divertia toda a gente com umas larachas. Mais tarde, teve um processo disciplinar por tráfico de divisas. Todos eles terão sido convocados pelo director Pereira de Carvalho.Para o que sucedeu naquele dia em Villa Nueva del Fresno, avento duas hipóteses: uma é a do suborno. Custa-me muito dizer isto porque o Pereira de Carvalho foi provavelmente o melhor director que tive. A verdade é que ele também gostava muito de dinheiro e pode ter sido manobrado pelo grupo de Argel, que era a única organização interessada na eliminação física de Delgado. Até porque o Delgado tinha desiludido, vinha com o intuito de denunciar aquilo tudo, os comunistas, o bando de Argel... Esta é uma hipótese. A outra, e inclino-me mais para esta, é a seguinte: o Casimiro Monteiro era um homem impulsivo, e impulsivo era também o general. E o general Delgado era um indivíduo que andava sempre armado. Ao ver avançar para ele aquele tipo descomunal que era o Casimiro Monteiro, o general rapa da pistola, o outro rapa também e mata-o primeiro. Pode ter sido isso.De uma forma ou de outra, o que parece mais lógico é que deve ter sido o grupo de Argel a preparar a trama, tendo havido alguma fraqueza da nossa parte. Uma coisa eu posso garantir: o dr. Oliveira Salazar, por tudo o que lhe conheço, e algumas vezes fiz serviço de vigilância ao presidente do Conselho de Ministros, estaria sempre contra a eliminação física de alguém.
B.O.S: Nunca conversou com o Casimiro Monteiro acerca deste assunto na África do Sul?
O.C: Não, nunca falei. Eu fui para a África do Sul depois de ter sido libertado sob caução e para evitar, como parece que esteve para acontecer, que me prendessem novamente. Mas vinha a Portugal de vez em quando e numa dessas escapadas fui contactado por uma advogada, Maria Manuel Magro Romão, que me pediu para falar ao Casimiro Monteiro. Disse-me que estava interessada em escrever uma biografia dele, sobretudo sobre a sua participação no caso Delgado. E eu falei com o Casimiro Monteiro. Encontrei-o em Richards Bay vivendo miseravelmente e quase cego. Usava o nome falso de José Fernandez. Sobrevivia com a ajuda da polícia sul-africana, que o amparou depois de ter fugido de cá. Disse-lhe que estavam interessados em escrever uma biografia dele, que lhe pagavam, e ele não se pôs de lado. Entretanto, o projecto não avançou de imediato e o Casimiro Monteiro morreu. Há quem diga que não morreu, mas morreu mesmo.