O Isento tem reparado ultimamente numa espécie de moda que invadiu o universo feminino ocidental (e até mesmo parte do masculino). Os Psicólogos quiçá lhe chamem histrionismo… mas esta noção, para além de desactualizada, é demasiado nebulosa e pode não ser a mais adequada. Deste modo, o Isento decidiu baptizar esta nova e estranha forma de vida como – ‘Fenómeno Amelie’. Ora, o que é o ‘Fenómeno Amelie’?
Antes de respondermos à questão teremos primeiro que conhecer a referência. Amelie é uma personagem de um extraordinário filme de Jean-Pierre Jeunet. Sempre alegre e bem disposta, esta amorosa rapariga caracteriza-se por ser ‘uma querida’ que, basicamente, ‘anda por aí’….
Estas novas criaturas, de idades situadas entre os 15 e os 25 anos, aparentam ter como actividade exclusiva a contínua e inesgotável missão de transformar o essencial em contingente, o compromisso em impulso, a notícia principal em ‘faits divers’, a ética em estética (e a própria estética numa vivência próxima da ‘arte menor’, tipo ‘chapitô’ e afins…), e, por fim, a certeza em autêntico relativismo*1.
Quanto ao seu método, este parece ser o mesmo que inspira os grandes actores, ou seja, o da diluição da identidade em espelhos segundo a lei de Stchepkine “Pouco importa se a representação é boa ou má. O importante é que seja autêntica!”.*2
Já lá vai o tempo em que o conservadorismo oprimia a modernidade e em que o fanatismo se opunha ao progresso. Para uma ‘Amelie’, ambos os lados têm o seu interesse estético, portanto ambos podem ser vividos como ‘momento’.
Na cabeça destas queridas (e destes queridos) Che-Guevara convive amistosamente com o Capitalismo Americano, tal como Salazar com Mário Soares, Lefebvre com Leonardo Boff e assim por diante…
Ora, por mais estranho que pareça, estas (e estes) jovens não se estão nas tintas para a cultura nem são necessariamente idiotas. Pelo contrário, estudaram, viajaram e são bastante mais sofisticados que os seus pais, para além de se caracterizarem pela sua natural curiosidade. Deste modo, ao estar a par de todos estes assuntos o que faz uma 'Amelie'?
… Uma 'Amelie' torna-se revolucionária pela manhã e faz-se uma executiva de excelência no seu part-time da tarde…
… Ao fim-de-semana, Amelie vibra de alegria numa excursão ao Vimieiro com ex-Pides e, de regresso, passa pela Freguesia das Cortes para visitar a Casa-Museu da Fundação Soares…
… Noutra ocasião, ela sente-se invadida por ondas energéticas e espirituais, enquanto repara nos vitrais de um mosteiro do rito de S. Pio V; entretanto, pela noite, corresponde-se com adeptos da Teologia da Libertação no Site do Movimento dos Sem-Terra…
… Tudo é giro… tudo é querido… e, ao fim de um mês, Amelie conheceu uma data de gente de diferentes sensibilidades e de diferentes lugares… é extraordinário…
... então, suspirando de alegria, ela aponta para o mapa e recorda os sítios onde esteve e as pessoas que lá vivem:
- Estes estão aqui, aqueles estão ali e aqueloutros acolá…
… Eis que o Isento pergunta:
… E ‘Amelie’?... Onde está ‘Amelie’?!...
… Mas o que é que isso interessa?... ela é uma ‘querida’… e ‘anda por aí’…
*1
Claro está que o relativismo começa nos sofistas, passa pelos cínicos e cépticos da filosofia helénica tardia, renasce com o aparecimento do idealismo moderno, ganha novo fôlego com o fim da noção de sistema em Nietzsche e Kierkegaard, dá a sua machadada final com o pensamento heideggeriano (e o surgimento da pós-modernidade) e atinge a sua dimensão Hollywood, chegando às massas, pela difusão do pragmatismo americano.(Sim, a sua versão actual é mais americana que europeia. A prova disso está na noção de ‘eficiência’ promovida pelas empresas privadas, pois esta não permite grande flexibilidade)
No entanto, essa tão apregoado conceito, só agora está a ser posto em prática. E quem o pratica autenticamente são os jovens de hoje! Estes não precisaram de chegar à conclusão de que tudo é relativo, pois já nasceram numa realidade nova em que esta concepção é a única Verdade Absoluta a que têm acesso (e talvez nem estejam cientes disso). Assim, o fenómeno Amelie traduz a derradeira vitória do fanatismo relativista assumido, não como posição intelectual ou ética, mas como atitude vital.
*2 A representação tal como hoje em dia a concebemos caracteriza-se por esta autenticidade a partir da questão de Stanislavsky – ‘e se eu fosse x?’. As divergências encontram-se mais ao nível da consciência (ou não) dos actos, assim como do controle (ou descontrole) do actor sobre a personagem.